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Archive for the ‘miradas’ Category

Devo eventualmente causar ciúmes às mulheres do presente e às de um passado recentíssimo, mas sou obrigado a admitir: morro e vivo de um amor ao passado, mais especificamente pela mulher do passado. Foi aquilo que convencionamos chamar de “a mulher austríaca do século XVII”. Aquela garota que tem um dote muito valioso – daqueles que se costumava calcular em gemas de diamante e fardos de trigo. Por isso, entendam: por mais sofisticadas, amáveis e interessantes que vocês sejam, (in)felizmente, estarei atado – atávica, mental e carnalmente – àquela mulher que já não existe.

O certo é que não há aqui reinvenção, nem platonismo. Platonismo seria rejeitar a imperfeição do possível em nome de uma suposta perfeição do impossível. O amor à mulher austríaca do século XVII – que facilmente poderia ser capixaba, economista ou andar vivíssima por aqui, ali pelos lados da Urca ou do Cambuci – pode ser apenas uma modesta vocação à imperfeição que também há e deve haver no impossível.

Trata-se de algo remotamente semelhante ao misto de fascínio, apreço e temor que se costuma nutrir pelas bebidas quentes e fumegantes um segundo antes de elas virem até a boca. Quando muito, esse amor pela mulher austríaca do século XVII é um ressentimento mal disfarçado por todas as cartas búlgaras que ficaram sem resposta em 1904. Algum psicanalista mal ajambrado poderia especular que se trata de uma projeção traumática relacionada àquela mocinha ruiva de cabelos curtos que beijamos apenas uma vez numa festa junina da escola porque ela estava ligeiramente bêbada, mas com a qual não transamos porque ela ficou sóbria antes do tempo ou antes de nossa década. Nós mesmos chegamos a relembrar daquela ocasião em que – quando crianças e em plena ceia de natal – tivemos a parva convicção de que nossa tia estava flertando conosco, até que ela voltasse a falar sobre a farofa ou sobre o salpicão de frango e nos lançasse na mais amargurada das incertezas sobre o real significado daquele olhar/cruzar de pernas.

Mas tudo isso não passa de cortina de fumaça perante a perpétua moenda de prodígios que se pode extrair do giro das saias em preto e branco ou em technicolor. Por quantas horas se pode fitar o rosto de uma Lauren Bacall ou de uma Mélanie Laurent acendendo um cigarro? Com que faniquito onanista se pode acompanhar a Rainha Margot, na pele branca de uma Isabelle Adjani mascarada, em um beco sórdido procurando, em meio ao populacho, por um vassalo para a sua libido regicida?  Qual é o quilate da inveja que se pode ter de Chaplin por ele ter colocado as mãos em Paulette Goddard, aquela – pra dizer o mínimo – sapeca? Ora, o que dizer da dor de cotovelo que se pode sentir pela Mimi Baez ter mudado de sobrenome por causa daquele cara de quiabo do Richard Fariña? E – sem que percamos a compostura com o inquérito – quantos banhos de mangueira não poderiam ser dados em Irène Jacob em todos os fins de tarde, de todos os verões, em todos os países tropicais ou temperados até o fim dos tempos? Hein!?

Esses exemplos são incontáveis e – embora sejam modelares – podem dar a entender, de modo equivocado, que o amor à mulher do século XVII tem algo de cinematográfico ou artificioso. Ledo engano, camaradas. Não se trata de glamour, nem de um afeto advindo de um temperamento nostálgico ou vagamente noir ou retrô. Cabe lembrar, antes de mais nada, que a Jane Birkin, embora fosse absolutamente maravilhosa, tinha uma dentição desalinhada, com um largo vão entre os incisivos, algo que dava a ela um aspecto terreno e humano e a fazia merecedora da beleza incongruente e sensual do Serge Gainsbourg. O que está em jogo é lembrar que nem mesmo a Áustria era a Áustria no século XVII, a despeito do espírito catador de milho dos Habsburgos e – portanto – o amor à mulher do século XVII é nada mais do que amor à poesia.

E ninguém aqui há de negar o quão transcendente é o olhar da mulher de carne e osso quando ela – por um gesto, gemido, promessa ou renúncia – unge-se do brilho da mulher austríaca do século XVII e nos mata a sede daquele “gole d’água bebido no escuro”.

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Uma palavra guardada

Uma palavra não proferida é um fantasma não exorcizado, uma assombração. Uma palavra não dita é um demônio zombeteiro a vagar pelo corpo, a azucrinar as vísceras, a botar a mente em desordem. Uma palavra não externada pode ser uma ideia bela, mas será uma ideia incompleta. Uma palavra não anotada é um pensamento natimorto, um orgasmo inatingido. Uma palavra nunca rabiscada é a angústia da inconcretude e o desassossego do peito cimentado. Uma palavra não expressa é um sofrimento precoce e infernal. Uma palavra não falada é um arrependimento antecipado, um fardo descomunal. Uma palavra não proferida é um tormento, mesmo que seja um ato de bravura. Uma palavra não dita pode ser gentileza ou fina forma de amar, mas não deixará de ser um incômodo. Uma palavra não proferida é uma pulsão refreada, uma tortura, um suplício. Uma palavra não decretada é o aquém. Uma palavra nunca marcada é uma privação tremenda, uma abstenção. Uma palavra não enunciada é uma aflição. Uma palavra não manifesta é uma inquietude, por paradoxal que seja. Uma palavra não proclamada é um sacrifício, uma sevícia brutal. Uma palavra não anunciada é uma forma de não existir. Uma palavra não exposta é uma submissão horrenda, uma maneira horripilante de morrer.

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A beleza. E a fúria

Era uma sina. Havia algo que mobilizava ainda mais seus desejos impulsivos de varão além das belezas imoderadas, das maneiras e dos trejeitos elegantes, da suavidade dos sorrisos brancos quase perfeitos de certas moças: era a ferocidade, o ímpeto, a iminência explosiva do surto furioso. Era o furor dos olhares diretos e nunca tergiversados, a quase incontinência da manifestação da vontade, a indicação cristalina – embora não dita – da pulsão. O mais – a beleza, a graça, a elegância, o ritmo compassado – lhe provocava encanto, admiração, deslumbramento. Mas apenas a ferocidade colérica lhe estimulava o arrebatamento fatal: a urgência imperiosa de morrer. Era que a combinação infernal da beleza com a fúria o botava em completo desconcerto, como se precisasse domar a sanha para evitar que ela saísse a perturbar a ordem harmoniosa das coisas e das gentes, como se o assomo extraordinário pudesse acabar extrapolado num acontecimento cruel ou num banho de sangue, como se a presença incontestável do ímpeto feroz o inclinasse cabal e inevitavelmente aos caminhos desmedidos da indecência. Existia uma contínua vibração luxuriosa na ira feminina que o movia, e tentar amansá-la era um vício tão difícil de superar quanto a compulsão dos alcoólatras ou dos jogadores de casino. Era uma sina tremenda o arrebatamento pelo encontro belíssimo da beleza com a fúria, ao qual se rendia por sabê-lo incontrolável. Mas se rendia a contragosto, porque tinha plena ciência do mito incontáveis vezes contado: era belo o canto da sereia…

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O cuidado e o descuido

Certa vez – pouco tempo atrás – disseram-me que a arte suprema dos médicos não consiste nos arroubos heroicos do salvacionismo, tampouco no despiste da doença e da dor com cargas extras de sofrimento, vício ou alienação.  Disseram-me que a verdadeira arte dos médicos é cuidar.

Foram tão convincentes na explicação que eu até me senti no direito de rearquitetar o futuro e juntar, numa mesma maquete, os ofícios de cuidador, professor, escritor e proselitista político. A vida pública combinada com a tarefa diária de cuidar, eis a missão! Considerei ser possível novamente misturar a esgrima contra o sistema e suas estruturas a um trabalho mais brando – e também constante – de afagar suas entranhas e costuras. Mirar a praça pública, mas tocar o homem.

Eu havia abandonado esse caminho por me sentir inapto para os lampejos de super-herói e por não querer fazer dos meus ossos a indigesta receita dos enganadores. Porém, quando me disseram que ser médico é cuidar, pensei com os meus botões. “Taí, isso eu sei fazer… e bem”.

E essa imodéstia não tem a ver com uma noção de que sou um bom cuidador porque não sou capaz de um descuido. Não sou do time dos infalíveis, lembrem-se bem. Ser infalível, ser incapaz de um descuido é ser aquele herói que já descartamos no início desse texto, que descartamos já há alguns meados dessa vida.

Ora, ser um bom cuidador é compreender que existem dois tipos de descuido.

O primeiro deles é um descuido vulgar que é um cisco no olho dos ilibados, dos perfeitinhos, dos obcecados… esse é o colete que vestem os desumanos. Falhar é sempre mais humano do que um vidro de felicidade postiça ou sintética. Não é disso que se trata. Esse descuido é mais que admissível, é bem vindo.

É esse descuido que move a história. É esse descuido salutar que faz um vigia dizer a outro em Tróia “relaxa, é só um cavalo de madeira!”, é esse descuido que faz o americano na guarita de Pearl Harbor dizer “pode ir dormir que tá sussa!”. Esses descuidos é que afundam titanics e erguem a vida real.

Porém, existe outro tipo de descuido – esse, sim, grave – que não advém da eficácia; outro tipo de descuido que não nasce do erro ou do cálculo. O mais lamentável descuido é filho da indiferença.

A indiferença é capaz de parir aquele minuto, aquele segundo, aquele exato instante em que é construída uma fenda, uma lacuna, um precipício. O grand canyon da deliberada opção por si mesmo em detrimento do outro. Esse descuido é o que não se pode admitir aos médicos, aos irmãos, aos amigos, aos políticos e aos amantes.

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Da estante

“Ne cherchez plus mon coeur; les bêtes l’ont mangé.
Mon coeur est un palais flétri par la cohue”
(Charles Baudelaire, in Causerie)

Minha irmã sonhou comigo, disse que eu teria filhos caso arrumasse a estante da sala. Procurei ver em cada volume um pequeno espermatozoide intrépido. Qual deles seria a senha para o futuro? Fiquei desconfiado quando encontrei, em muitos deles, dedicatórias de mulheres que já se foram há muito com os seus amores ralos. Se um livro de um amor morto ocupa espaço na estante, é de se supor que arrumar a estante significa jogar livros velhos na lata do lixo… Pensei logo que não. Há tanto livro bom para amores ruins. Arrumar a estante significa o que, então? Minha irmã não soube responder, embora tenha respondido que arrumar a estante é deixar a minha desordem mais bonita. Logo que comecei o trabalho de catalogá-los, disseram-me que a liberdade é a possibilidade do isolamento. Eu discordei e respondi que a liberdade seria a possibilidade do isolamento somente na medida em que ser livre implicasse em desassociar-se, em partir em desembestada fuga do desassossego de estar com o outro. E acrescentei que não queria filosofar sobre algo tão impuro e simples. A liberdade é o de menos nesses dias em que o meu coração anda tão suspenso, como se as minhas veias fossem fios que suspendem um fantoche. A aorta certamente não bombeia mais sangue, tem sido ocupada por uma espécie de óleo diesel, uma seiva que é a mistura de uma saudade que ainda dói latejada e a novidade de um amor novo mais comovente que os cuidados paliativos que se prestam a um idoso sob doença terminal. Arrumar a estante é um ato de raiva, não deixa de ser, já que o mais justo seria derrubar as paredes, e contar logo a verdade aos que ainda me visitam: eu perdi a aposta. Desde a primeira vez, um minuto antes de beijar a primeira namorada, naquele dia em que – sentado de madrugada em frente à praça da faculdade de Belas Artes – eu disse para mim mesmo e para ela que o melhor não é convencer, o melhor é cativar… E aquele dito se transformou na sina, na sentença, na profecia. Tornei-me mais cativante do que cativo. Atraí todas as mulheres e homens que pude, e isso – antes de ser um mérito ou uma dádiva – mostrou-se como um engodo, como uma trapaça, já que cativo a todos, sem convencê-los jamais. Por fim, fico reconfortado nessa opção tão malfadada quanto deliberada: não teria estômago para seguir no ofício do convencimento, até tenho os talentos inerentes a essa prática convencida e soberba de ser convincente, mas não!  Um senso estético, um senso aberrante de repulsa me impede… Jamais convencerei ninguém, seguirei nesse esporte intransigente de cativar os outros e esperar que isso baste para que eles se convençam por si próprios. Que se lasquem os recicladores, reformados, reformistas. Ao contrário disso, serei eu o maior detrator do ferro velho. Ao novo, ao novo…

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Quando os diques se rompem

Romperam-se os diques. Quando os diques se rompem, nada pode conter o fluxo da correnteza. Vem dos arrabaldes a água com sua força estrondosa, sua pulsão incontinente, com a inevitabilidade atroz de sua vazão. Vem a torrente soberana, inabalável e inatingível, e contra ela não podem os exércitos, a Igreja, os sacros impérios. Quando os diques se rompem, a água se espraia e arrasta tudo o que pode. Leva com ela os tijolos das paredes quebradas, as telhas alaranjadas feitas cacos dos telhados recém-destroçados, os duros, compridos e resistentes cabos de aço das fundações que outrora se pensava indestrutíveis. A correnteza se esparrama e traz a reboque os carros, os furgões, os traileres, agora ínfimos brinquedos que sumirão na água ora transformada em buraco negro, para depois reaparecerem a léguas de distância, uns ainda identificáveis, outros meras sombras de um passado recente. Vêm com a vazão da corrente os muros de arrimo, os maquinários fabris, as tubulações, as árvores seculares e parrudas, tão enraizadas que parecia não haver força que as tirasse do lugar. Com a água vêm sendo levados de arrastão os sinais de trânsito, os postes de luz, diversos pedaços do asfalto mal conservado, os animais que não tiveram como escapar. Na água desaparecerão as pulsões reprimidas e alguns tesouros guardados, e reaparecerão boiando em outros lugares as fotos que impediram alguns de se colocar a salvo dos tormentos da memória. Com sorte terão se livrado os moradores, entre mortos e feridos, salvaram-se todos, alguns destes últimos sabe-se lá como terão logrado sobreviver. Quando os diques se rompem, em poucos minutos a correnteza inunda e destrói a cidade. Sabe-se que as cidades devastadas encontram força para se reerguer e colocar tudo de pé novamente, peça por peça, tijolo por tijolo. Mas ainda que se apaguem das paredes as marcas do nível a que chegou a água, ainda que as casas sejam reconstruídas, mesmo que os diques sejam refeitos – desta vez muito mais robustos e vigorosos -, a cidade inundada guardará consigo a lembrança indelével da enchente. Ainda que cada coisa seja reposta em seu lugar original, que a cidade fique ainda mais bela e resplandecente, restará essa recordação como um carma inescapável. Um dia se romperam os diques, e a água levou os muros, as telhas, os carros, as fotos, as pulsões reprimidas…

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Caçula

benjamim
(Benjamim, antropónimo [filho mais novo de Jacob])

s. m.
1. Filho mais novo. = CAÇULA
2. Filho predilecto.
3. Indivíduo mais jovem ou mais querido de um grupo.

Cabia deitada entre o meu pulso e o meu cotovelo e era tão leve que eu temia que pudesse flutuar, era um ser tão frágil que prometia cair para cima; enquanto meu pai fechava o portão da garagem, eu – com apenas 9 anos – tinha a maior tarefa da vida até então: sustentar por alguns instantes a minha irmã mais nova que acabara de chegar do hospital.

Não havia até aquele momento tamanho sinônimo para o novo. Thaís justificava o conceito de novidade, a vida não era como sempre foi. O maior ensinamento ao irmão do meio é quando surge o caçula e faz dele algo a menos, algo a mais, algo diferente, algo novo.  O caçula é o ladrão que furta uma moeda e traz em troca uma barra de ouro. Thaís, a caçula, me ensinou a falar Brecht com todas as letras [b-r-e-c-h-t] porque, no dia em que chegou à nossa casa, explicou a todos claramente que a vida e o mundo devem ser tidos como algo passível de transformação.

Thaís pintou a poeira que havia em cima dos móveis com amarelo, fez da nossa normalidade ouro em pó, Thaís inundou a cama de meus pais com uma colcha azul que borbulhava uma notícia em forma de rendas: vocês quatro agora são cinco, vocês quatro agora são outros.

E a vida é mesmo pródiga em ser eterna naquilo que se esgota ou se renova; nem bem a minha mãe partiu, Thaís perdeu não só a mãe, mas perdeu também o posto de caçula para Laura. Fico aqui a imaginar o quão assaltada deve estar a se sentir a Thaís. Ela foi dormir e quando acordou havia um estojo ao lado de sua cama, havia ali a seu dispor uma caneta tinteiro reluzente feita da melhor prata, sem que houvesse – num raio de 50 jardas ou 50 anos – um vidro de nanquim para fazer jus ao presente.

Com que tinta vai pintar Thaís, agora que perdeu a sua caçulice? Vai ter que inventar outra, talvez me peça alguma emprestada já que agora divide comigo o posto de irmã(o) do meio. Talvez invente uma e me ensine algo novo que eu não sabia até então dessa minha condição.

Reza a lenda que a Thaís — que jamais gostou de café — está bebericando dessa bebida nos últimos meses e isso tem algo a ver com me fazer a velha companhia daquela companheira que se foi.

Essa vida sem bordas não permite a ninguém olhar sem compaixão para um desconhecido. Essa vida sem bordas é longa o suficiente para nos reensinar o significado das palavras mais velhas e conhecidas, é longa o suficiente para fazer os reis mudarem de posto, e os homens mudarem de gosto, é longa o suficiente para nos fazer reaprender o significado da palavra irmão, da palavra irmã.

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Negar e Negar

Com que espanto ele se livrou de si mesmo. Foi assim de repente e, quando reparou, desmontou-se todo, ficou sem centro, com a gravidade toda desmilinguida em uma das mãos, como quando uma lanterna sem pilhas esmorece sem luz.

Não começou pelo calcanhar, nem pelo umbigo – conforme imaginou que um dia desintegrar-se-iam todos os homens: foi dissolvido naquilo que julgava mais sólido, peremptoriamente absoluto e perene.

Justo ele que se arrogou sempre de seu caráter eruptivo e basáltico; teve que se flagrar em sua desfaçatez, desfez-se, teve que conhecer a sua tão oculta vocação para o desmanche.

De início, julgou que se tratava apenas de mais uma muda. Ele sempre fora afeito a carnavais em suas corriqueiras trocas de carcaça, naquelas suas ecdises constantes, mas modestas, naquelas suas catarses controladas, nas quais a liturgia da mudança de superfície consistia em regatar-se de si mesmo, emergir de si próprio sempre com aquilo que julgava ser a sua essência sem mácula.

Tudo começou quando fez a uma mulher desconhecida – com dois afagos no rosto e uma mordida no bico do seio – a promessa de um filho e depois do sexo disse que era mentira, disse que era só uma brincadeira tonta e disse também que se ela era dona de si mesma que abortasse ou tivesse ideia melhor.

Tudo começou quando beijou a mulher que amava como se fosse uma qualquer e percebeu que assim ela era mais atraente, mais robusta e menos mortal.

Tudo começou quando beijou a mulher que amava como se fosse uma qualquer e percebeu que estava sozinho; que ela continuava sendo a mesma, mas era o seu amor que era baldio e terreno.

Tudo começou quando topou na rua com um livro sobre Trotsky escrito pelo Leminski, aquele que – para ele – jamais passara de um autor de quadrinhas curtas, aquele mesmo da pichação despretensiosa nos banheiros: “não fosse isso/ e era menos/ não fosse tanto/ e era quase”. E, de repente, teve que prestar contas com o seu palavrório, com a sua inconsistência, com o seu autoritarismo, com a sua prolixidade, com a sua falta de rigor, com a sua falta de amor genuíno para com os seus amores, teve que prestar contas com a sua falta de brandura, com a sua falta de acurácia, com a sua falta de atenção às suas faltas e tanto mais…

Tudo começou quando ele conheceu homens que sabiam menos do que ele, mas sabiam melhor. Homens que conjugavam “a paixão segundo a revolução”.

Tudo começou quando ele percebeu que aquilo que ele tinha de melhor não valia muito no mercado, nem na feira de segunda, nem no show de variedades, nem no sebo, nem no antiquário; que tudo aquilo só teria valor se fosse bem queimado: com fogo ou soda cáustica.

Tudo começou quando a sua mãe morreu. Ou um pouco depois, ou um pouco antes.

Tudo começou quando ele entendeu que deveria rir nas partes em que costumava chorar, e chorar nas partes em que costumava rir.

Tudo começou onde costumava terminar, naquele seu hábito – quase um vício – de pensar sentindo, como se os pensamentos pudessem ser redimidos – fossem quais fossem – pelos afetos. Naquele seu vício – sequer um hábito – de sentir pensando, como se os sentimentos não fossem mortos, esvaziados com tanto. Ele teve que apartar o que o mundo aparta, parir-se num mundo já nascido, onde se sente e não se pensa, onde se pensa e não se sente. Ele teve que perceber que seu sentimento era sentimentalismo, e seu pensamento, esquematismo.

Tudo começou quando compreendeu que Charles Chaplin não era seu irmão. Era – se muito – seu bisavô. Na sua biografia inconsistente, percebeu: fora um aristocrata humanista, um anticapitalista romântico, um marxista de araque, e agora – catapumba! – era só um homem de meia idade tentando recuperar o tempo perdido.

Tudo começou quando ouviu o maracatu – ainda sem o vinho lhe chegar até a boca – e aquilo lhe deu uma coceira diabólica na alma, uma vontade de vingar seu pai, de honrar sua mãe e de beijar sua irmã.

Vontade de se livrar de si mesmo e partir dançando no mar dos homens.

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Vêm João Paulino e Maria Angu baixando do cimão da ladeira. Vêm as pernas miúdas, os troncos gigantes, os braços inertes, bonecões das festas do Brasil profundo. Curiango baixa a ladeira junto deles, a cara pintada de branco, a mal ajambrada peruca grisalha de mulher, fantasia vermelha de vaquinha. Benito, há trinta anos responsável por manter viva uma tradição que ia morrer, vem descendo também, colete e chapéu multicoloridos, rústico megafone de metal em punho. Faz par com o do Gui, que encarna Juca Teles, fundador do carnaval: fraque e calça de nylon amarelos, acompanhados do azul escuro da gravata, como se fora mestre de cerimônias de um circo mambembe, o arauto dos bonecos. Na batida três normal-um-três rápido, soa o bumbo de Forasteiro, emprestado ao grupo para preencher lacuna de última hora. Calças largas, camiseta branca, coletinho negro, uns parafusos a menos de nascença, Coroné entra no compasso meio descompassado com a caixa de percussão. Benito e Gui levam seus instrumentos à boca e vão anunciando pela cidade: “Oi, oi, oi! Oi é João Paulino! Oi, oi, oi. Oi é Maria Angu!”. Vão baixando o cimão da ladeira para mexer com o povo e correr atrás das crianças, inocente brincadeira sem grandes propósitos. Vão pedindo a licença do divino Espírito Santo para profanar sua homenagem sagrada.

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“Pobre de mim
Emília me traga uma notíca boa
Pirlimpimpim, se não chover
É vento ou é garoa

Mais do que ser passarinho
Anjo, boneca, gente, assombração
É ser que nem é Emília
Campina, campo, espaço e amplidão
Mais do que ser sabida
E ter segredos que fazer magia
É ser que nem é Emília
Fonte, chama, sopro, ventania
Por mais que o sol se esconde
Cruzes se cravem no raiar do dia”

[Emília – Sérgio Ricardo]

Um amor que não acaba e não envelhece é uma invenção do diabo.
Um amor que não acaba e não envelhece é uma mentira divina.

Amor bom tem que acabar…

… ou envelhecer.

Um amor que não acaba e não envelhece é a histeria das dondocas eternamente jovens, com as rugas afogadas por tranquilizantes e pela falta de senso de ridículo.

Um amor que não acaba e não envelhece é uma galinha morta com o feitio dos títulos de nobreza, com seus ornamentos decadentes e suas louças anacrônicas para os chás no meio da tarde.

Um amor que não acaba e não envelhece é a martelação repetitiva dos que falam sem argumentos, dos que vivem dos feitos de anteontem e não percebem quando o público já foi embora da plateia.

Um amor que não acaba e não envelhece é o medo de jogar de novo daqueles que já venceram e temem perder e – por isso – não se arriscam a vencer melhor ou d’outro modo.

Um amor que não acaba e não envelhece é o pânico de jogar ou a tolice daqueles que já perderam e temem perder de novo e – por isso – não se arriscam a vencer, ou a perder mais e melhor.

Um amor que não acaba e não envelhece é a pura demência nostálgica dos que abominam o futuro e empalham a si próprios nas posições de triunfo que, de tão ufanistas e banais, predispõem à gangrena e ao torcicolo.

Um amor que não acaba e não envelhece é aquele que se vende como inoxidável e que, portanto, tem o sex appeal formidável de uma panela de pressão, a presunção inumana de uma liga de ferro, crômio, níquel e molibdênio.

Um amor que não acaba e não envelhece é a incapacidade de vencer o esquecimento não apenas pela memória, mas também por uma obstinada e incorrigível aptidão para criar.

Um amor que não acaba e não envelhece é o burguês correndo para guardar as jóias ao ouvir a turba da história lhe acossando a janela.

Um amor que não acaba e não envelhece é o vampiro que não diz a ninguém quantas cáries tem.

Amor bom tem que acabar…

… ou envelhecer.

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