Devo eventualmente causar ciúmes às mulheres do presente e às de um passado recentíssimo, mas sou obrigado a admitir: morro e vivo de um amor ao passado, mais especificamente pela mulher do passado. Foi aquilo que convencionamos chamar de “a mulher austríaca do século XVII”. Aquela garota que tem um dote muito valioso – daqueles que se costumava calcular em gemas de diamante e fardos de trigo. Por isso, entendam: por mais sofisticadas, amáveis e interessantes que vocês sejam, (in)felizmente, estarei atado – atávica, mental e carnalmente – àquela mulher que já não existe.
O certo é que não há aqui reinvenção, nem platonismo. Platonismo seria rejeitar a imperfeição do possível em nome de uma suposta perfeição do impossível. O amor à mulher austríaca do século XVII – que facilmente poderia ser capixaba, economista ou andar vivíssima por aqui, ali pelos lados da Urca ou do Cambuci – pode ser apenas uma modesta vocação à imperfeição que também há e deve haver no impossível.
Trata-se de algo remotamente semelhante ao misto de fascínio, apreço e temor que se costuma nutrir pelas bebidas quentes e fumegantes um segundo antes de elas virem até a boca. Quando muito, esse amor pela mulher austríaca do século XVII é um ressentimento mal disfarçado por todas as cartas búlgaras que ficaram sem resposta em 1904. Algum psicanalista mal ajambrado poderia especular que se trata de uma projeção traumática relacionada àquela mocinha ruiva de cabelos curtos que beijamos apenas uma vez numa festa junina da escola porque ela estava ligeiramente bêbada, mas com a qual não transamos porque ela ficou sóbria antes do tempo ou antes de nossa década. Nós mesmos chegamos a relembrar daquela ocasião em que – quando crianças e em plena ceia de natal – tivemos a parva convicção de que nossa tia estava flertando conosco, até que ela voltasse a falar sobre a farofa ou sobre o salpicão de frango e nos lançasse na mais amargurada das incertezas sobre o real significado daquele olhar/cruzar de pernas.
Mas tudo isso não passa de cortina de fumaça perante a perpétua moenda de prodígios que se pode extrair do giro das saias em preto e branco ou em technicolor. Por quantas horas se pode fitar o rosto de uma Lauren Bacall ou de uma Mélanie Laurent acendendo um cigarro? Com que faniquito onanista se pode acompanhar a Rainha Margot, na pele branca de uma Isabelle Adjani mascarada, em um beco sórdido procurando, em meio ao populacho, por um vassalo para a sua libido regicida? Qual é o quilate da inveja que se pode ter de Chaplin por ele ter colocado as mãos em Paulette Goddard, aquela – pra dizer o mínimo – sapeca? Ora, o que dizer da dor de cotovelo que se pode sentir pela Mimi Baez ter mudado de sobrenome por causa daquele cara de quiabo do Richard Fariña? E – sem que percamos a compostura com o inquérito – quantos banhos de mangueira não poderiam ser dados em Irène Jacob em todos os fins de tarde, de todos os verões, em todos os países tropicais ou temperados até o fim dos tempos? Hein!?
Esses exemplos são incontáveis e – embora sejam modelares – podem dar a entender, de modo equivocado, que o amor à mulher do século XVII tem algo de cinematográfico ou artificioso. Ledo engano, camaradas. Não se trata de glamour, nem de um afeto advindo de um temperamento nostálgico ou vagamente noir ou retrô. Cabe lembrar, antes de mais nada, que a Jane Birkin, embora fosse absolutamente maravilhosa, tinha uma dentição desalinhada, com um largo vão entre os incisivos, algo que dava a ela um aspecto terreno e humano e a fazia merecedora da beleza incongruente e sensual do Serge Gainsbourg. O que está em jogo é lembrar que nem mesmo a Áustria era a Áustria no século XVII, a despeito do espírito catador de milho dos Habsburgos e – portanto – o amor à mulher do século XVII é nada mais do que amor à poesia.
E ninguém aqui há de negar o quão transcendente é o olhar da mulher de carne e osso quando ela – por um gesto, gemido, promessa ou renúncia – unge-se do brilho da mulher austríaca do século XVII e nos mata a sede daquele “gole d’água bebido no escuro”.